A chave para compreensão do mundo

“Podemos ver os intelectos cambaleando em todas as partes e em todas as extravagâncias da ética e da psicologia; no pessimismo e na negação da vida; no pragmatismo e na negação da lógica; procurando seus presságios em pesadelos e seus cânones em contradições; gritando de medo à vista de coisas remotas além do bem e do mal, ou sussurrando sobre estranhas estrelas onde dois mais dois é cinco. Entrementes, essa coisa única que à primeira vista parece tão exorbitante em seu esboço, mantém-se sólida e sadia em sua alma: permanece como moderador de todas esses manais.”

(G.K.C pág:285)

 

Cristo fundou a Igreja empregando duas grandes figuras de linguagem em suas últimas palavras dirigidas aos apóstolos que receberam autoridade para fundá-la. A primeira foi a frase acerca de fundá-la sobre Pedro como sobre uma pedra; a segunda foi o símbolo das chaves. Da primeira trata-se de um exemplo de algo que é exatamente o oposto da simplicidade e da evidência mesmo na linguagem, na mediada em que se descreveu um homem como sendo uma pedra quando ele se parecia muito mais com um junco.

Mas a outra imagem, a das chaves, é de uma precisão que mal foi notada na sua exatidão. As chaves tiveram um papel bastante importante nas artes e na heráldica da cristandade; mas nem todos observaram a peculiar adequação dessa alegoria. Atingimos um ponto na história em que é preciso dizer alguma coisa sobre a primeira aparição e as primeiras atividades da Igreja no Império Romano; e para essa breve descrição nada poderia ser mais perfeito do que aquela antiga metáfora. O cristão primitivo era exatamente uma pessoa que levava consigo uma chave, ou então aquilo que ele dizia ser uma chave. Todo movimento cristão consistia em alegar a posse dessa chave. Não era simplesmente um movimento para frente, o que poderia ser mais bem apresentado por aríete. Não era uma coisa que varresse tudo o que fosse similar ou diferente, como acontece com um movimento social moderno. O movimento definitivamente se recusava a agir assim; nesse sentido era tão tacanho como alguém pode imaginar. Só que ele era a chave capaz de abrir a prisão do mundo inteiro, deixando entrar a luz branca da liberdade.

O credo era como a chave sob três aspectos, que podem ser convenientemente resumidos nesse mesmo símbolo. Primeiro, uma chave é acima de tudo um objeto que tem uma forma. É um objeto que depende inteiramente de manter sua forma. O credo cristão é acima de tudo uma filosofia de formas e o inimigo da informidade. É nesse ponto que ele difere de toda aquela infinidade amorfa, maniqueísta ou budista, que forma uma espécie de lago noturno no tenebroso coração da Ásia: a ideal aniquilação de todas as criaturas. É nesse ponto que ele difere da vagueza análoga do mero evolucionismo: a idéia de criaturas constantemente perdendo sua forma. Um homem que soubesse que a chave de casa tivesse fundida formando uma unidade budista com um milhão de outras chaves ficaria aborrecido. Mas um homem que soubesse que sua chave estaria aos poucos crescendo e se ramificando em seu bolso, formando novos denteados ou complicações, não poderia sentir-se mais satisfeito.

Segundo, o formato da chave em si é uma forma fantástica. Um selvagem que não soubesse que era uma chave teria a maior dificuldade para adivinhar o que poderia ser aquilo. É um objeto fantástico por ser em certo sentido arbitrário. Uma chave não é uma questão de abstrações; nesse sentido uma chave não é um objeto de discussão. Ou ela se encaixa na fechadura ou nãos e encaixa. É inútil ficar discutindo sobre ela, considerada em si mesma, ou tentar reconstruí-la baseando-se puramente em princípios de geometria ou arte decorativa. Não faz sentido alguém dizer que gostaria de ver uma chave mais simples; seria muito mais sensato tirar o máximo proveito de um pé-de-cabra. E em terceiro lugar, como a chave é necessariamente um objeto que tem um formato, assim essa chave do cristianismo tinha sob certos aspectos um formato bastante elaborado. Quando as pessoas se queixam da religião por ela ter-se complicado tão cedo com teologia e coisas do gênero, esquecem que o mundo não só se metera num buraco: era um labirinto cheio de buracos e becos sem saída. O problema em si mesmo era complicado; no sentido comum não envolvia apenas algo tão simples como o pecado. Também estava repleto de segredos, de falácias inexploradas e insondáveis, de inconscientes males mentais, de perigos provindo de todos os lados. Se a fé houvesse enfrentado o mundo apenas com banalidade sobre a paz e a simplicidade a que alguns moralistas gostariam de reduzi-la, não teria exercido o mais leve efeito sobre aquele luxurioso e labiríntico manicômio. Basta aqui dizer que sem dúvida havia muito acerca da chave que parecia complexo; de fato, só uma coisa a seu respeito foi simples: ela abriu a porta.

O Mediterrâneo era um lago no sentido de ser um reservatório: nele numerosos cultos ou culturas diferentes eram, como se diz, coletadas. Aquelas cidades diferentes, uma de frente da outra em volta do círculo do lago, tornaram-se cada vez mais uma única cultura cosmopolita. Sob o aspecto militar e jurídico, era o Império Romano; mas ele era multifacetado. Poderia ser chamado de supersticioso por conter grande número de superstições; mas de modo algum pode ser chamado de bárbaro. Nesse contexto cosmopolita surgiu o Cristianismo, e tudo nessa história sugere que ele foi percebido como algo singular, novo e estranho.

É fato, cada vez mais admitido pelos historiadores, de que muito cedo em sua história a Igreja já apareceu como Igreja: com tudo o que está implícito numa Igreja era muito do que numa Igreja é detestado. Aqueles que afirmam que o Cristianismo não era uma Igreja, mas um movimento moral idealista têm sido forçados a empurrar o período de sua perversão ou desaparecimento cada vez  mais para trás, quase que desaparecendo no momento exato de sua criação e pervertendo-se já em sua origem.

É idiotice a tentativa de dizer que a fé cristã surgiu como uma coisa simples, no sentido de algo vago ou infantil. Talvez o ponto em que Igreja e paganismo se encaixe é no fato de que ambos eram altamente civilizados, mas igualmente complexos. Ambos eram multifacetados, mas a antiguidade era nesse caso um buraco multifacetado, como um orifício hexagonal aguardando um tampão igualmente hexagonal. Nesse sentido somente a Igreja era multifacetada na forma certa a ponto de adequar-se ao mundo, dando sentido a ele. Os lados do Mediterrâneo defrontavam-se uns com os outros através do mar e aguardavam a chegada de algo que se voltasse ao mesmo tempo para todas as direções. A Igreja tinha de ser simultaneamente romana e grega e judia e africana e asiática. Nas palavras do apóstolo: deveria ser tudo para todos.

E se o Cristianismo não tivesse sido nada mais que uma moralidade mais ampla que varreu o politeísmo, não haveria nenhuma razão para que ele não devesse ser engolido pelo Islã. A verdade é que o próprio Islã foi uma reação bárbara contra a complexidade civilizatória que constitui característica cristã: a idéia de equilíbrio na deidade, como na família, que faz do credo uma espécie de sensatez, e faz dessa sensatez a alma da civilização. E é por isso que a Igreja é desde o início algo que mantém sua própria posição e ponto de vista, totalmente à parte dos acidentes e anarquias de sua época. É por isso que ela imparcialmente distribui golpes à esquerda e à direita. Ela não é um movimento simplesmente por não ser um movimento. Não é uma moda oficial porque simplesmente não é uma moda. Era e é algo que podia coincidir com modas e movimentos, podia controlá-los e podia sobreviver a eles.

Aquele que gostariam de sugerir que a fé foi um fanatismo estão condenados a uma eterna perplexidade. Na explicação deles, ela deve necessariamente aparecer como fanática por nada e fanática contra quase tudo. Ela é ascética e está em guerra contra os ascetas; é romana e se revolta contra Roma; é monoteísta e luta furiosamente contra o monoteísmo hebreu; é severa em sua condenação do que é severo; é um enigma que não se pode explicar nem mesmo com irracionalidade. E que espécie de irracionalidade é essa que parece razoável a milhões de imperadores cultos através de todas as revoluções em mil e seiscentos anos? Ninguém se diverte com um enigma, ou um paradoxo, ou uma simples confusão mental durante um espaço de tempo tão longo! Não conheço nenhuma explicação a ser a que afirma que esse fenômeno não é uma irracionalidade, é razão; que se há fanatismo é fanatismo pela razão e contra o que não é racional. Essa é a única explicação que consigo encontrar para uma coisa que desde o início é tão desapegada e tão confiante, condenando coisas tão parecidas com ela mesma , recusando ajuda de poderes que pareciam essenciais para sua existência, compartilhando em seu aspecto humano de todas as paixões de sua época, no entanto, sempre, no momento supremo, elevando-se de repente acima delas, nunca dizendo exatamente o que se esperava que ela dissesse e nunca precisando desdizer nada do que havia dito. Não consigo encontrar nenhuma explicação exceto a de que, como na mitologia, Palas saiu do cérebro de Júpiter, a Igreja de fato saiu da mente de Deus, madura e poderosa e armada para o julgamento e para a guerra.

A sanidade do mundo foi restaurada e a alma do homem recebeu a salvação mediante algo que de fato satisfez as duas tendências adversárias do passado; tendências que nunca haviam sido plenamente satisfeitas e com a máxima certeza nunca haviam sido plenamente satisfeitas e com a máxima certeza nunca haviam sido satisfeitas em conjunto. A busca mitológica do romance foi satisfeita por ser uma história e a busca filosófica da verdade foi satisfeita por ser uma história verdadeira. É por isso que a figura ideal teve de ser um personagem histórico, o que jamais ninguém pensou de Adônis ou Pã; nem aqueles que eram devotos a estes. Mas também por isso que o personagem histórico teve de ser uma figura ideal até preencher muitas das funções atribuídas a essas figuras ideais: eis por que foi ao mesmo tempo o sacrifício e o banquete, por que pode ser mostrado sob os emblemas da videira que vai crescendo e do sol que vai surgindo. Quanto mais profundamente pensamos no caso, tanto mais concluímos que, se de fato existe um Deus, sua criação não poderia ter atingido outro desfecho diferente dessa concessão ao mundo de um romance ideal. Caso contrário os dois lados da mente humana teriam permanecidos separados, e a mente do homem teria permanecido fendida e dupla: um lóbulo sonhando sonhos impossíveis, o outro repetindo cálculos invariáveis. Os pintores teriam continuado eternamente pintando o retrato de ninguém. Os sábios teriam continuado eternamente adicionando números que resultariam em nada. Era o abismo que nada exceto a encarnação poderia preencher: a encarnação divina de nossos sonhos. E paira sobre o abismo aquele cujo nome é mais que sacerdote e é mais antigo que a cristandade: o Mediador, o mais poderoso criador de pontes.

A moral disso tudo é que religião sempre é revelação. Noutras palavras é uma visão, recebida pela fé, mas é uma visão da realidade. Essa é a diferença entre visão e devaneio. Essa é a diferença entre religião e mitologia. Essa é a diferença entre fé e fantasia. Existe algo próprio no emprego da palavra visão que implica duas coisas a seu respeito: primeiro, que ela acontece muito raramente e, segundo, que ela provavelmente acontece de uma vez por todas. Um devaneio pode acontecer todos os dias, pode ser diferente a cada dia. Trata-se de uma diferença maior que aquela entre contar histórias de fantasias e encontrar-se com um fantasma.

Mas, se não é mitologia, tampouco é filosofia. Não é filosofia porque, sendo uma visão, não é um modelo, mas sim um quadro. Não é uma daquelas simplificações que reduzem tudo a uma explicação abstrata, dizendo, por exemplo, que tudo é recorrente, ou que tudo é relativo, ou que tudo é inevitável, ou que tudo é ilusório. Não é um processo, mas uma história. Tem proporções, daquele tipo que se vê numa pintura. Não tem repetições regulares de um modelo ou de um processo. Pelo contrário, ela as substituiu pelo fato de ser convincente como um quadro, ou uma fotografia. Noutras palavras ela é como se diz exatamente como a vida. De fato ela é vida.

Cristianismo é reconciliação porque é realização seja da mitologia, seja da filosofia; é uma história e nesse sentido uma história dentre centenas de outras, só que verdadeira. É uma filosofia e nesse sentido uma filosofia dentre centenas de outras, só que é como a vida. Mas acima de tudo é uma reconciliação (no sentido exato de religião) porque é algo que pode ser chamado de filosofia de histórias.

Com isso voltamos outra vez ao símbolo mais especialmente cristão dentro da mesma tradição: o modelo perfeito das chaves. Ela responde ao problema histórico da razão entre passado e presente, entre mitologia e filosofia: simplesmente porque ele se encaixa na fechadura. Trata-se de uma dentre várias histórias, só que verdadeira. Trata-se de uma dentre várias filosofias, só que é a verdade. Essa historia não nos prende num sonho de destino ou numa consciência de ilusão universal. Somos cristãos não porque adoramos uma chave, mas porque passamos por uma porta e sentimos o vento que é a trombeta do sopro de liberdade por sobre a terra dos vivos.

 

Extraído e adaptado de O Homem Eterno, de G. K. Chesterton. Editara Mundo Cristão, 2010.

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